Pela primeira vez, pesquisadores constataram a presença de metais provenientes do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, há quase nove anos, em todos os níveis de vida estudados na foz do Rio Doce e na costa marinha do Espírito Santo e Sul da Bahia. O levantamento foi divulgado pelo g1 ES.
Entre os animais impactados estão peixes, aves, tartarugas, toninhas e até baleias. Nos estudos anteriores, a contaminação era identificada principalmente em animais microscópicos e da base da cadeia alimentar. Mas agora, ficou provado que os metais também atingiram os grandes animais.
E as consequências são várias, como contaminação da água do rio e da vida marinha no litoral, passando pelo nascimento de espécies com anomalias e deformadas a casos de tumores em animais.
Os dados estão no 5° relatório anual dos ambientes dulcícola, costeiro e marinho, ao qual o g1 ES teve acesso com exclusividade, e detalham as principais conclusões sobre a saúde dos ecossistemas aquáticos monitorados pelo Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA).
“A gente coleta amostras de água, sedimento, areia e lama dos diversos ambientes: doce, costeiro, praia, manguezais, restingas, plataforma continental, e toda a cadeia trófica, desde o produtor primário, o plâncton, o fitoplâncton, o zooplâncton, larvas de peixes, larvas de caranguejos, bentos (que são os organismos que vivem no fundo), até grandes animais, como cetáceos, aves, tartarugas”, pontuou o coordenador técnico do PMBA e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Fabian Sá.
Ao todo, 37 instituições de ensino de todo o Brasil, entre públicas e particulares, integram o PMBA, desde 2018, e contribuíram para a publicação do relatório anual.
O grupo também analisou contaminantes orgânicos, questões genéticas, comportamentais, contaminantes e seus possíveis efeitos em níveis celulares, de indivíduos, de população e de comunidade.
Baleias
Nas baleias, a descoberta foi feita a partir da biópsia de animais que encalharam no Espírito Santo. Nesses animais, foi constatada a presença de metais no sangue.
O relatório revelou que mais de 15 metais como ferro, níquel, arsênio, cádmio e alumínio foram encontrados em amostras de organismos marinhos ao longo da cadeia alimentar, desde o fitoplâncton até grandes cetáceos.
Para Frederico Drummond Martins, que é biólogo, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e coordenador da Câmara Técnica de Diversidade (CTBio), depois de cinco anos de estudo, essa é a consolidação do impacto e a relação demonstrada com o rompimento da barragem.
Como começou
Segundo os pesquisadores, após o desastre, os impactos começaram nos organismos da base da cadeia alimentar. Afetou, em um primeiro momento, a água e os sedimentos, e organismos menores, como fitoplânctons e zooplânctons, passando pelos crustáceos e camarões. Depois, chegou aos peixes, aves e animais maiores, como cetáceos, por exemplo.
O relatório afirma que a acumulação de metal já é vista em organismos superiores na cadeia alimentar.
“A boa notícia, se é que a gente pode dizer assim, é que, no caso de água e sedimentos, as tendências de qualidade parecem que tendem a melhorar. Elas vinham numa crescente de piora e parece que estão invertendo isso discretamente. A má notícia é a acumulação de metais, principalmente nos organismos superiores, como em aves. O dado de contaminação de aves neste último relatório é bem grave, chama a atenção. Então, parece que está havendo aí uma bioacumulação e uma biomagnificação de metais, passando dos organismos da base da cadeia alimentar para os superiores”, pontuou Frederico.
O oceanógrafo do ICMBio João Carlos Tomé, reforçou o entendimento de que os metais estão começando a ser observados em animais maiores: “O nível de contaminação foi se acumulando, é o que a gente chama de bioacumulação. Os animais de vida curta morrem rapidamente, vão para o fundo, e o sedimento depois se redisponibiliza para a cadeia. É um processo já conhecido que a gente só está constatando. Os animais de vida longa, a cada ano que passa, vão reacumulando e aumentando a absorção desses metais”.
Conjuntivite em tartarugas
O biólogo Frederico Drummond Martins enumerou alguns dos impactos identificados na saúde dos peixes, tartarugas, aves e outros organismos, além da perda de diversidade genética das espécies.
No caso das tartarugas, devido ao trabalho realizado há décadas pelo Projeto Tamar, existe uma base de dados robusta em relação ao animal, sendo mais detectável e concreto identificar anomalias que não existiam antes do desastre.
Vale ressaltar que a Praia de Regência, em Linhares, no Norte do Espírito Santo, é uma importante área de desova de tartarugas, especialmente, a Tartaruga de Couro, que é uma espécie ameaçada de extinção, e deposita os seus ovos em poucos lugares no Brasil.
Em relação às baleias, a presença de metais foi constatada a partir de biópsia nos animais encalhados, além de relação de deficiência de saúde.
“O nexo causal em animais como a baleia, que roda o mundo, é mais difícil, não é tão linear quando a gente compara, por exemplo, com o que a gente tem de tartarugas. Mas existem correlações estatísticas fortes que sustentam uma evidência de que esse impacto chegou sim às baleias”, afirmou Frederico.
Peixes
Os peixes são outro grupo bastante impactado, com o aumento dos níveis históricos de turbidez, que ainda não retornaram ao patamar original.
“A gente tem larvas de peixes com anomalias muito importantes, déficit de saúde e alterações nas comunidades. Por exemplo, no Rio Doce houve um favorecimento de espécies exóticas mais resistentes a impactos em detrimento de espécies nativas, mais sensíveis a impactos. O aparelho digestivo do peixe também fica bastante comprometido. Quando você vê as fotos, você vê que ao invés de ter um aparelho digestivo normal, você vê que o bichinho está doente mesmo”, indicou o coordenador da CTBio.
O oceanógrafo João Carlos Tomé lembrou que o metal na água chegou também às toninhas — cetáceo que se assemelha a um golfinho — existentes na costa do Espírito Santo.
“Há alterações de organismos nas toninhas, que têm na foz do Rio Doce, a sua população mais ameaçada no Brasil. Foram detectados impactos significativos na saúde e impactos indiretos, como, por exemplo, a diminuição da comunicação entre eles. Por se comunicarem por som, a alta turbidez do ambiente dificulta que machos, fêmeas e crias se encontrem”, explicou Tomé.
“Desastre continua”
Prestes a completar nove anos desde o rompimento da barragem de Fundão, em novembro de 2015, de acordo com os pesquisadores, ainda é possível encontrar lama tanto no curso do Rio Doce como no mar.
João Carlos Tomé observou que os níveis de metais nos ambientes monitorados permanecem acima dos valores pré-desastre.
“Inequivocamente, os estudos estão nos mostrando que os níveis dos elementos não voltaram ao período pré-desastre, alguns mais, outros menos. […] O desastre continua acontecendo, há uma quantidade significativa na calha do rio, que a cada grande período chuvoso é redisponibilizado para a biota, e também presente no mar, ficando mais aparente quando ocorrem as frentes frias”, explicou.
Tomé lembrou que, atualmente, a pesca ainda está proibida em algumas áreas da costa capixaba, com base em uma regra de 2016. Mas, segundo ele, precisa ser revista já que a contaminação extrapolou a área delimitada.
Ele disse que pesquisadores se reúnem com o Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Pesca e órgãos estaduais para que novas medidas sejam tomadas a fim de preservar a biodiversidade e a segurança alimentar da população.
Pescadores se assustam
Encontrar pescadores em rios e no mar do Espírito Santo que relatam flagrar animais com aparência diferente do que era visto antes do rompimento da barragem não é difícil. Além do impacto relacionado à condição dos animais, eles falam sobre a dificuldade em manter a atividade da pesca e resistência dos consumidores na compra do pescado da região.
De família de pescadores, Helena da Silva Vieira Santos, de 59 anos, mora em Lajinha, comunidade que fica entre os rios Piraquê-Açu e Piraquê-Mirim, em Aracruz. Durante a vida inteira viveu da pesca, mas nos últimos anos disse que a família tem enfrentado muitas dificuldades para sobreviver dessa atividade.
“As pessoas têm preconceito de comprar nosso pescado, têm medo de passar mal. Antigamente, nosso rio era saudável, mas depois da descida da barragem tudo mudou. Os nossos rios estão doentes. Minha cunhada que sempre catou mariscos, agora fica com coceira quando entra no mangue. As ostras estão manchadas, a pele está lisa com uma espécie de cobertura de minério, brilha à noite. Eu nunca vi isso antes”, explicou a pescadora.
Consequências
Os dados do relatório anual foram apresentados em Vitória, na primeira semana de setembro, durante o 5º Seminário Técnico-Científico de Apresentação dos Resultados do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA). O resultado também vai ser apresentado em Brasília, no dia 27 de setembro, para o Ministério Público Federal, Ministério da Saúde, entre outras instituições.
Segundo a publicação, no que diz respeito à reversibilidade do cenário encontrado, “a maioria dos impactos (com exceção aos genéticos) identificados apresentam a possibilidade de serem revertidos ao longo do tempo, desde que sejam adotadas medidas adequadas de mitigação, reparação e conservação das condições abióticas e bióticas dos ecossistemas afetados, visando a obtenção de condições semelhantes ou melhores àquelas observadas no período pré-rompimento da barragem de Fundão”.
João Carlos Tomé reforçou que esse tipo de evento precisa ter um caráter pedagógico para os órgãos públicos. “Isso de fato é um grande exemplo para o Brasil, é uma lição de como a gente tem que se preparar melhor, de como algo a 600 km da costa afeta o Parque Nacional dos Abrolhos a 1.000 km de distância. É uma lição para a gente de que as coisas estão todas interligadas e nós precisamos estar atentos a isso porque temos muito risco à nossa volta. E, como ficou demonstrado, os órgão públicos e a sociedade não estão preparados para esses grandes eventos”, declarou.
O que dizem os envolvidos
Com acesso ao relatório, o g1 ES procurou os órgãos que se relacionam de alguma forma com o desastre de Mariana. São eles: Fundação Renova, as empresas Vale, Samarco e BHP, o Ministério da Saúde, Ministério da Pesca, Ministério do Meio Ambiente, a Anvisa, o Ministério Público Federal, a Secretaria da Saúde do Espírito Santo e o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema/ES).
A Fundação Renova considera que os resultados dos relatórios do PMBA no Espírito Santo devem ser interpretados com cautela e ainda precisam ser integrados a outros estudos realizados no Espírito Santo e em Minas Gerais para preencher lacunas de conhecimento.
Ações integradas de restauração florestal, recuperação de nascentes e saneamento estão acontecendo ao longo da bacia e visam a melhoria da qualidade da água. A bacia do Rio Doce tem pontos de monitoramento hídrico e estações automáticas que permitem acompanhar, desde 2017, sua recuperação e gerar subsídios para as ações de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão.
Os dados podem ser acessados no portal Monitoramento Rio Doce, construído em parceria com seis órgãos ambientais e agências de gestão de recursos hídricos, que formam um grupo técnico ligado ao Comitê Interfederativo (CIF).
A Samarco disse que retomou suas atividades em dezembro de 2020 sem a utilização de barragens de rejeitos, e atualmente opera com o sistema de empilhamento a seco de rejeitos e cava confinada para disposição do rejeito ultrafino. A empresa opera em Mariana (MG) e Anchieta (ES).
Todas as estruturas geotécnicas da Samarco estão estáveis e são monitoradas 24 horas por dia, sete dias por semana, por meio do Sistema Integrado de Segurança, que inclui o Centro de Monitoramento e Inspeção (CMI), que conta com mais de 2000 equipamentos de última geração e equipes de técnicos que fazem inspeções em campo. As estruturas são auditadas por terceiros e as Declarações de Condição de Estabilidade (DCE) estão em dia.
Até julho de 2024, foram destinados R$ 37,47 bilhões para as ações de reassentamento, indenização e recuperação do meio ambiente executadas pela Fundação Renova.
As empresas Vale e BHP disseram que a Fundação Renova deveria ser procurada por ser a responsável pelas ações de reparação e compensação.
O Ministério da Pesca informou que construiu uma proposta para atender os pescadores(as), que está no programa Propesca, que visa diminuir os impactos ao setor pesqueiro e recuperar a atividade. Também está no escopo do programa a diminuição e/ou eliminação dos riscos à saúde da população, seja os pescadores e pescadoras, como a sociedade como um todo.
O ministério não respondeu sobre a proibição ou restrição de pesca no litoral do Espírito Santo.
A Secretaria da Saúde do Espírito Santo informou que integra o Grupo de Trabalho Rio Doce, criado pelo Ministério da Saúde, com profissionais da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e as Secretarias da Saúde de Minas Gerais.
O grupo criou um plano estratégico para medidas de atenção, vigilância e promoção integral à saúde, que está em fase de consolidação dos dados para a realização de ações e medidas de saúde. No planejamento, consta a realização de estudos de avaliação de risco à saúde humana, toxicológicos, epidemiológicos, entre outros.
O Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) informou que faz parte da Câmara Técnica de Conservação da Biodiversidade (CT Bio) e acompanha, desde o início o PMBA.
Todo ano o Iema, junto com os demais órgãos participantes da Câmara Técnica de Conservação e Biodiversidade (CTBio) emite uma avaliação sobre os relatórios das pesquisas. Entretanto, a avaliação desta última ainda está em andamento. As avaliações e notas técnicas são dados públicos, estão disponíveis aqui.
Reforçou que, no Espírito Santo, a pesca está proibida apenas na costa capixaba. A proibição vai da região de Degredo até Barra do Riacho (da linha de costa até a profundidade de 20 metros), de acordo com a decisão judicial do Ministério Público Federal.
No âmbito da biodiversidade aquática, os estudos fornecem subsídios para tomadas de decisão para as ações de reparação e compensação que estão sendo ou ainda precisam ser tomadas pelos órgãos competentes.
O Iema ressaltou que participa apenas dos monitoramentos de biodiversidade com foco na conservação das espécies. Questões sobre a saúde humana são acompanhados pelas câmaras técnicas compostas por órgãos relacionados à Saúde (Anvisa e Sesa).
Comercialização proibida
A Anvisa, por sua vez, reforçou que a pesca na região foi proibida por decisão da Justiça Federal do Espírito Santo em 17 de fevereiro de 2016. A proibição vale entre a Barra do Riacho, em Aracruz, até Degredo/Ipiranguinha, em Linhares, dentro dos 25 metros de profundidade.
Considerando essa e outras demandas judiciais, a Anvisa publicou a Resolução nº 989/2016, que proibiu o armazenamento, a distribuição e a comercialização de pescado oriundo da atividade pesqueira desenvolvida no mar dessa mesma região.
“A Anvisa, como autoridade regulatória da saúde, tem recebido dados e participado de discussões acerca dos impactos à saúde em decorrência do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG. Atualmente, compomos o Grupo de Trabalho Rio Doce – GT Rio Doce para elaboração de proposta de plano estratégico para medidas de atenção, vigilância e promoção integral à saúde das populações atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão”, disse, em nota.
O grupo foi criado pelo Ministério da Saúde com o objetivo de congregar os diversos atores governamentais do setor saúde envolvidos nesse assunto, compreendendo a Fiocruz, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). Os últimos dados do PMBA foram submetidos ao referido GT Rio Doce e encontram-se em análise.
Não enviaram resposta até a última atualização da reportagem: Ministério da Saúde, Ministério do Meio Ambiente e Ministério Público Federal.
FONTE: agazeta.com.br