“Caiu para cima”. Assim pode ser definida a nomeação do ex-secretário de Saúde do Espírito Santo, Nésio Fernandes, para o importante cargo de secretário nacional de Atenção Primária, do Ministério da Saúde no Governo Lula.
O texto abaixo analisa a trajetória de Nésio em terras capixabas, escrito pelo jornalista Victor Vogas para o site es360, numa brilhante análise que merece uma profunda reflexão.
“Considero que o escritor deve começar a escrever quando, primeiramente, tem algo a dizer e, em segundo lugar, quando sabe como dizê-lo.” A frase é de Alejo Carpentier (1904-1980), um enorme escritor cubano, e creio também aplicar-se ao ofício do jornalista (parente próximo do escritor), até porque o próprio Carpentier foi também um jornalista apaixonado e chegou a dirigir a Imprensa Nacional após a Revolução Cubana (1959).
Tenho algo a dizer sobre Nésio Fernandes de Medeiros Junior, mas confesso não saber ao certo se sei como dizê-lo, até porque esse marcante personagem político, que ora se despede dos capixabas, é dos mais originais.
Acho que um bom início talvez seja justamente constatar que Nésio, 40 anos, é um cara muito diferente, a começar pela rara combinação de crenças e convicções políticas, ideológicas e religiosas. Numa mão, o “Manifesto Comunista”, livro “sagrado” para os marxistas (ele é comunista de carteirinha mesmo, filiado ao PCdoB); na outra, a própria Bíblia Sagrada, pois Nésio, em vez de ateu, é evangélico.
Outra nota bem incomum em sua história é, digamos, a geografia percorrida por ele até aportar no Espírito Santo: nascido no interior de Santa Catarina, esse marxista nada ateu fez escola em Cuba (onde estudou Medicina) e escala no Tocantins (onde foi secretário de Saúde de Palmas), antes de chegar a Vitória no fim de 2018, para desenvolver, por encomenda de Casagrande, um diagnóstico da situação da saúde pública estadual.
O estudo rendeu-lhe a nomeação para o cargo de secretário estadual de Saúde – naquela que foi tranquilamente a mais inesperada escolha de Casagrande ao montar a sua equipe para o atual governo.
Agora, o ex-secretário já está em Brasília, onde permanecerá, como secretário nacional de Atenção Primária no governo Lula (PT/PV/PCdoB). Oficialmente exonerado do cargo na última quarta-feira (28), “caiu para cima”.
Se alguém fizer um teste de recall daqui a dez, vinte, trinta anos, e instar os entrevistados a citar espontaneamente um secretário de Estado do segundo governo Casagrande (2019-2022), aposto que o nome de Nésio será o campeão de citações. Mais ainda se o entrevistador lembrar aos respondentes que a pandemia do novo coronavírus teve início em março de 2020.
Durante a gestão da pandemia, Nésio foi protagonista no Espírito Santo, tendo se provado um combatente incansável na trincheira do SUS e da guerra contra o flagelo da Covid-19.
Incontáveis foram as lives e/ou coletivas de imprensa dadas por ele e seu 02 na Sesa, Luiz Carlos Reblin (PT), para, sem jamais perder a ternura (nem a paciência), apresentar dados, explicar a evolução do quadro, projetar os cenários futuros, tirar dúvidas e passar orientações à população com o auxílio da imprensa, sempre com didatismo, clareza e indispensável franqueza (isto é, sem dourar a pílula, muito menos empurrar outras inócuas).
Desde o início, defendeu isolamento social e aceleração das pesquisas, da fabricação e da distribuição em massa de vacinas. Enquanto o governo federal apostou em opacidade e obscurantismo, o Painel Covid-19, criado pelo governo estadual, foi gol de placa: exemplo nacional de transparência. E a decisão de investir na expansão dos leitos próprios na rede hospitalar estadual, no lugar de hospitais de campanha, não apenas provou-se acertada como deixou positivo legado para a população capixaba, sobretudo a mais vulnerável, dependente dos serviços do SUS.
Nésio também deixa para trás polêmicas e inúmeros enfrentamentos. Bem-quisto e bem avaliado no andar de cima do Palácio Anchieta, desagradou a boa parte da classe política capixaba (prefeitos e secretários municipais de Saúde) e da classe médica local (que o diga o CRM-ES), especialmente cooperativas médicas e outros representantes do sistema privado de saúde.
Polêmicas à parte, creio caber-lhe um reconhecimento: no que concerne à gestão da pandemia, esse improbabilíssimo secretário de Saúde foi, para os capixabas (incluindo quem não gosta dele) o cara certo no lugar certo não só naquela hora, mas naquele momento histórico (the darkest hour para a humanidade nos últimos 100 anos).
Por obra do acaso, na travessia do mar mais turbulento, os capixabas tiveram ao leme um médico de verdade e um técnico do SUS, autodefinido como um “sanitarista clássico”. Foi, durante essa hora mais escura, a voz da ciência, da medicina responsável… e do bom senso.
Ter mantido um mínimo de sensatez no período mais dramático atravessado pela humanidade no último século pode até parecer pouco. Provou-se, porém, uma grande virtude, em contraste com a condução errática da pandemia por parte do governo federal, com o negacionismo, a insanidade e a irresponsabilidade que, ditadas por Jair Bolsonaro, tomaram conta do Ministério da Saúde no auge da crise sanitária de amplitude mundial. Em tempos assim, fazer o mínimo que se espera do poder público vira muito. Por contraste, foi um sopro de lucidez em meio às trevas do obscurantismo.
Ao leme da gestão estadual, Nésio sofreu e suportou muitas pressões. Enfrentou adversários poderosos, incluindo o já citado CRM-ES, que em julho de 2020 passou a defender publicamente o uso de cloroquina no “tratamento precoce” de pacientes Covid.
Enfrentou também adversários internos no governo Casagrande. Não foram poucas as batalhas de argumentos travadas com outros secretários posicionados em uma ala mais próxima aos comerciantes e industriais capixabas, portanto mais sensíveis aos reclames desses grupos muito bem organizados. Não foram poucas as batalhas perdidas para essa ala.
Uma política nacional de enfrentamento efetivamente coordenada pelo governo central e a adoção de um verdadeiro lockdown em todo o país logo no início da crise poderiam ter salvado mais vidas, mais negócios e mais empregos. Sem nem uma coisa nem outra, governos estaduais precisaram fazer as próprias escolhas.
No Espírito Santo, após o fechamento total do comércio nos dois primeiros meses da pandemia, o governo Casagrande, em meados de maio para junho de 2020, começou a flexibilizar gradativamente suas medidas de isolamento social.
Com o governo federal se eximindo das responsabilidades, governadores tiveram de assumir sozinhos o ônus político-eleitoral de contrariar empresários. Mas só até certo ponto. Foi preciso encontrar meios-termos, fazer concessões, conciliar interesses, mostrar sensibilidade ao desespero dos empreendedores (principalmente os pequenos) e construir, na medida do possível, a chamada “convivência segura com o vírus”.
No gabinete de crise do governo, havia uma correlação de forças e perspectivas em disputa, cada um representando uma visão. A de Nésio era a perspectiva exclusivamente médica e epidemiológica, sem concessões.
Nesse choque de interesses e de pontos de vista conflitantes, o secretário da Saúde se manteve impassível em seu papel e em sua trincheira. Enquanto o governo caminhava para a (re)abertura lenta, segura e gradual das atividades, ele seguiu defendendo, ao contrário, a adoção de medidas ainda mais rigorosas de controle da transmissão do vírus (hay que endurecer). Se dependesse só dele, as medidas de isolamento teriam sido intensificadas, na perspectiva do médico que visa salvar mais vidas, fiel ao juramento de Hipócrates.
Voto vencido em algumas discussões, Nésio protestou à sua maneira, especialmente no Twitter. Não poucas vezes usou a rede social como um megafone para apresentar dados que expunham a dimensão do problema e alertavam para o crescimento exponencial das taxas de transmissão e morte, à medida que se flexibilizavam as restrições. “Estou avisando…” era o recado subliminar.
Entre mortos e feridos, vitórias e derrotas, Nésio foi um sobrevivente. Quer dizer, um quase sobrevivente. Segundo ele mesmo, desde o início dos atuais governos estaduais, em 1º de abril de 2019, só quatro secretários de Saúde permaneceram no cargo até o fim. Ele está nesse grupo seleto, ao lado dos colegas do Rio Grande do Norte, do Rio Grande do Sul e de Pernambuco. Mas há que se matizar essa afirmação.
Tecnicamente, Nésio não ficou no cargo até o fim.
Vítima das profundas arestas políticas acumuladas ao longo da sua gestão na Sesa, foi sacrificado por um Casagrande que, em seu momento eleitoral mais crítico e de maior fragilidade política, cedeu a pressões de prefeitos e entregou-lhes a cabeça do secretário.
Após o inesperado revés que foi a não consumação da vitória no 1º turno, subitamente forçado a enfrentar um ascendente Manato no 2º turno e sob a ameaça real de ver a reeleição escorrer pelos dedos, Casagrande reuniu cerca de 70 prefeitos em um hotel na Enseada do Suá, no dia 6 de outubro. Precisava urgentemente reagrupar, reorganizar e reenergizar sua tropa e, o que é mais importante: não perder apoios fundamentais por todo o Estado.
Nesse evento, o governador ouviu o coro dos descontentes puxado por Enivaldo dos Anjos, repleto de críticas relativas a Nésio há muito tempo reprimidas e enfim verbalizadas por prefeitos aliados. Sabendo ler o momento altamente vulnerável de Casagrande, eles aproveitaram a ocasião para externar suas muitas insatisfações acumuladas com o secretário.
Nésio não teria traquejo político, seria distante, inacessível, ruim de diálogo e de relacionamento… Seria mais fácil falar com o governador que ser atendido pelo secretário. As comportas da represa foram abertas por Enivaldo, dando vazão a um mar de reclamações. Convertido em fardo eleitoral, Nésio ficou politicamente insustentável. Explícita ou implicitamente, estava exposta a condição dos prefeitos para seguirem apoiando Casagrande.
Ali foi selado o destino do secretário, comunicado no mesmo dia pelo governador a ele e a seu substituto, o até então subsecretário de Saúde Tadeu Marino (PSB). No dia seguinte, Marino foi designado oficialmente como secretário interino, e Nésio foi colocado em um longo período de férias, das quais, tecnicamente, jamais retornou.
O gozo forçado das férias “vencidas e acumuladas”, tiradas bem naquele momento, foi a saída honrosa encontrada para não jogar aos cães o secretário de tantos serviços prestados. Já no dia 30 de outubro, logo após a vitória eleitoral e em pleno comitê de campanha, o próprio Casagrande admitiu à coluna: Nésio não voltaria mais.
Retirado de cena no Espírito Santo, o médico rumou para Brasília, onde fica a sede do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), órgão presidido por ele até abril de 2023. De quebra, passou a integrar a equipe de transição de Lula e Alckmin, a quem obviamente apoiou, na área da Saúde.
Com a confirmação da escolha da presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, como ministra da Saúde de Lula, o próximo registro na ficha funcional de Nésio já está escrito: ele será o secretário nacional de Atenção Primária. Atuando na retaguarda técnica, no segundo escalão do Ministério da Saúde, poderá exercer um cargo quiçá bem adequado a seu perfil: ficando livre da exposição política inevitável a quem está na linha de frente, poderá realizar um trabalho técnico de burocrata com a visão do sanitarista e soldado do SUS.
Sobre o próprio destino, Nésio conta uma anedota muito comum em Brasília: “Certa vez perguntaram a um sujeito cotado para assumir um cargo na administração federal: ‘Você acredita na Bíblia ou em Karl Marx?’ Ele respondeu: ‘Acredito no Diário Oficial da União’.”. (Em tempo: como já registramos, ele mesmo acredita nos três)
Enquanto a nomeação de Nésio não é publicada oficialmente (o que só pode ocorrer a partir do dia 1º), o sucessor dele na Sesa já foi até anunciado por Casagrande: será o economista e administrador hospitalar Miguel Paulo Duarte Neto. A escolha do ex-diretor-geral do Hospital Estadual Central, no Parque Moscoso, é aprovadíssima por Nésio.
O ex-secretário não admite ter sido o autor da indicação nem o avalista do nome, mas é possível, sim, pela proximidade profissional e pessoal, que pelo menos um dedinho dele tenha havido na decisão de Casagrande, ainda que tenha sido o dedão: o polegar de aprovação para cima.
“Saio do cargo e do Espírito Santo com a missão cumprida e o sentimento de gratidão. Fizemos coisas muito bonitas”, diz Nésio à coluna.
“A obra máxima proposta ao ser humano é a de forjar o seu destino.” É outra frase de Alejo Carpentier.
O destino de Nésio já está escrito.
O seu legado também.
Adendo 1: não foi promoção pessoal
Eventuais especulações e suspeitas de que Nésio pudesse estar usando a pandemia como vitrine para se projetar eleitoralmente (reforçadas pelo fato de ele ter se candidato a deputado estadual por Tocantins sem sucesso em 2018, pelo PCdoB, com o nome de urna Dr. Nésio Fernandes) foram desmentidas pela sucessão dos fatos: ele nem sequer disputou as eleições de 2022.
Adendo 2: críticas internas
“Muito tranquilo”, mas “muito teimoso”. E, definitivamente, “detestado pelos prefeitos”. São predicativos atribuídos a Nésio por integrantes da equipe de Casagrande.
Fontes com livre trânsito no Palácio Anchieta confirmam que ele é desprovido do mínimo jogo de cintura político: ou seja, muito firme (ou aferrado) a suas convicções técnicas e ideológicas, não é de fazer concessões (e o que é a política, em uma de suas muitas definições, senão a arte de saber negociar e fazer concessões?).
Um antigo colaborador de Casagrande usa um adjetivo curioso para definir o ex-secretário: “Ele é muito sedutor”. Disse-o no sentido da capacidade de convencimento: é um sujeito muito persuasivo, capaz de convencer qualquer um de suas ideias. E muitas dessas ideias estão bastante “fora da caixinha”… o que, dependendo do ponto de vista, pode ser algo muito bom ou se reverter em algo problemático com o passar do tempo, como avalia a mesma fonte:
“Ele pensa fora da caixa, te convence a executar a ideia, vai tirando tudo da caixa e, quando você se dá conta, aquilo ali se tornou um problema, você precisa pôr tudo de volta na caixa, mas não dá mais: já está tudo espalhado”.
Adendo 3: a “Escola para Médicos”
Não se pode falar sobre o legado de Nésio na Sesa sem que se mencione o Instituto Capixaba de Ensino, Pesquisa e Inovação em Saúde (ICEPi), a principal “ideia fora da caixa” concebida e implementada pelo ex-secretário.
Hoje, segundo Nésio, o ICEPi oferece 20 cursos de pós-graduação. O instituto é definido por ele como “uma espécie de Mais Médicos, mas só com profissionais formados no Brasil”. O objetivo é a formação de especialistas para atuarem no SUS, incluindo médicos, enfermeiros e dentistas.
Selecionados por processo seletivo, os profissionais realizam um treinamento com duração de três anos. Nesse período, são alocados para trabalhar nas unidades de saúde dos municípios capixabas, atuando diretamente na atenção básica (o campo) enquanto estudam e cursam disciplinas. É praticamente uma residência médica, só que para sanitaristas: em vez de ser hospitalar, visa à formação de especialistas na atenção primária.
Hoje, pelas contas de Nésio, há 1 mil equipes do Programa Saúde da Família atuando no Espírito Santo. Destas, 540 tem médicos do Estado, e 80% delas têm pelo menos um médico, enfermeiro ou dentista que participam de programas de formação e educação pelo ICEPi.
“O ICEPi é hoje uma referência nacional. Diversos outros estados têm vindo ao Espírito Santo para conhecer a nossa modelagem legislativa e a velocidade em que conseguimos credenciar programas de pós-graduação. Tornou-se um grande caso de sucesso.”
Adendo 4: Balanço do próprio Nésio (números positivos e reverência a Casagrande)
Palavras finais de Nésio:
“Faço um balanço positivo tanto da minha missão na política pública como no crescimento pessoal. Tem uma palavra que expressa muito meu sentimento, que é de gratidão. O governador acreditou no projeto de diagnóstico que apresentei a ele na transição. Ele se apropriou da agenda da saúde. Você pode perguntar a Casagrande sobre todos os principais projetos da Sesa, e ele te explica em detalhes. Como escreveu Carlos Matus, a estatura do dirigente principal de uma instituição é que dá o teto do alcance que a cadeia de comando dirigida por ele pode ter como resultado. E o Casagrande deu um teto muito alto para a saúde pública no Espírito Santo.”
Ele exemplifica com números referentes à rede Samu, à de leitos hospitalares e ao Programa Saúde da Família:
Leitos
“Em quatro anos, saímos de um orçamento de R$ 2,6 bilhões na Secretaria de Saúde para um orçamento de cerca de R$ 4 bilhões, a ser executado em 2023. Os números são muito positivos. Modernizamos a gestão hospitalar e engrenagem na regulação de leitos hospitalares. No final do próximo governo, o Espírito Santo terá a maior proporção de leitos hospitalares per capita do Brasil entre as redes públicas estaduais.”
Samu
“Na rede Samu, em plena pandemia, o Espírito Santo alcançou ser o único estado do Brasil com base do Samu em funcionamento nos 78 municípios. Chegamos muito acima da média nacional.”
PSF
“Já no Programa Saúde da Família, o Espírito Santo nunca teve cobertura acima da média nacional. Com a construção de mais 111 unidades de saúde básica autorizadas pelo governador na semana passada, serão abertas mais de 250 equipes da estratégia do Saúde da Família. Isso levará o Espírito Santo a 100% de cobertura do programa nos próximos quatro anos. A média nacional dos estados é de base em 60%, 65% dos municípios.”