Em matéria publicada no site Consultor Jurídico, o desembargador Federal Vladimir Passos de Freitas fez ampla análise do desastre de Mariana, ocorrido em 2015, (caso Samarco) tecendo também considerações gerais sobre a atuação da Justiça na questão, incluindo a ação que corre na Corte Inglesa.
O desembargador aborda os diversos aspectos da atuação judicial no conhecido “Caso Samarco” e teceu consideração favorável ao Sistema Simplificado de Indenizações, implantado pela 12ª Vara da Justiça Federal, com o argumento da possibilidade da demora judicial na reparação de danos.
O Sistema Simplificado foi implantado em 2020 pelo juiz Mário de Paula Franco Júnior, da 12ª Vara Federal, com base em petição elaborada pela advogada Richardeny Lemke Ott, representando a Comissão dos Atingidos de Baixo Guandu e de Naque, (MG).
A íntegra da análise do desembargador federal Vladimir Passos de Freitas é a seguinte:
“No dia 5 de novembro de 2015, a Barragem do Fundão, localizada em Mariana (MG), rompeu, disto decorrendo o vazamento de 55 milhões de metros cúbicos de lama, a qual, em poucos minutos, soterrou a localidade de Bento Rodrigues.
A lama seguiu seu curso, chegou ao Rio Doce percorrendo 853 quilômetros, deixando um rastro de destruição e 19 mortes. Segundo Juliana Bezerra, o desastre atingiu “ao todo, 39 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo, onde moram 1,2 milhões de pessoas, habitam nestas cidades e viram suas vidas afetadas. Mais dois mil hectares de terras ficaram inundadas e inutilizadas para o plantio”.
Obviamente, foram acionadas todas as autoridades com competência administrativa ou judicial, para apurar responsabilidades e recompor os danos causados a um infindável número de vítimas diretas e ao meio ambiente. E assim surgiu um emaranhado de investigações envolvendo órgão policiais, agências ambientais, órgãos municipais, Ministério Público Federal e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
No âmbito penal, o Superior Tribunal de Justiça, em 25 de maio de 2016, decidiu pela competência da Justiça Federal da Subseção Judiciária Federal de Ponte Nova. No âmbito civil, mais de 300 ações civis públicas foram propostas e reunidas na 12ª Vara Federal em Belo Horizonte, sob a condução do juiz federal Mário de Paula Franco Júnior. As mais importantes são as que têm como autores o MPF e a União federal.
Nas ações por dano ambiental individual, reivindicadas através de advogados, as situações são mais complexas e não se resolvem com uma simples sentença. Basta ver que no polo ativo há municípios, pousadas, igrejas, populações indígenas, comerciantes, pescadores, enfim, um enorme número de vítimas por danos patrimoniais e morais.
No polo passivo, encontram-se as brasileiras Samarco e Vale e a multinacional BHP Billiton. E, para gerir todas as iniciativas, foi criada em 2016 a Fundação Renova, pelo governo federal e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, além de uma série de autarquias, fundações e institutos, conforme acordo celebrado em termo de transação e ajustamento de conduta. Referida fundação “é uma organização autônoma e independente que tem a missão de implementar e gerir os programas de reparação, restauração e reconstrução das regiões impactadas pelo rompimento da barragem de Fundão, localizada no subdistrito de Bento Rodrigues, em Mariana, Minas Gerais”.
Fácil é ver que se trata do mais importante caso de natureza ambiental existente no Brasil. Qualquer estagiário de Direito, com uma razoável dose de perspicácia, perceberá que um caso como esse nada tem a ver com uma ação civil pública proposta contra uma ou duas empresas. E mais. O mesmo estagiário concluirá que essas ações não chegarão ao final em menos de 15 a 20 anos, face ao nosso sistema de Justiça que tem quatro instâncias e dezenas de recursos.
Por tal motivo, o juiz federal Mário de Paula Franco Júnior deu ao caso soluções adequadas às suas peculiaridades. Percebendo que nos casos individuais as situações são múltiplas, em alguns proferiu sentenças “que estabelecem a matriz de danos e determinam o pagamento integral de indenizações que variam de R$ 23.980,00 a R$ 94.585,00 a onze grupos profissionais e de trabalhadores ligados à Comissão de Atingidos de Baixo Guandu (ES) e à Comissão de Atingidos de Nanuque (MG)”.
Em outros, cerca de 30 mil, todavia, homologou acordos entre os autores vítimas de dano ambiental individual e as rés, através da Fundação Renova. Os acordos por vezes são totais, em outras parciais, nestas focando apenas parte do conflito.
Mas, seja através de sentenças, seja através de homologação de acordos, o grande obstáculo ao final do processo estava no valor a ser fixado a título de indenização. Isso, aliás, não é novidade, pois esse é o ponto fraco de todas as ações ambientais, individuais ou coletivas. A fixação de um valor esbarra em dificuldades de forma de calcular e na prova pericial, que é demorada e cara.
Sabedor disto, o juiz federal da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte criou o Sistema de Indenização Simplificado, baseado na separação dos interessados em grupos e na adoção de práticas adotadas nos Estados Unidos para quantificar a indenização. Esse sistema de precificação de valores, ou seja, as métricas, nem sempre é visto com bons olhos no mundo jurídico.
Com olhos postos no ideal, consideram os estudiosos que uma reparação baseada em métricas não faz justiça. Possivelmente, com razão na maioria dos casos. Só que não as usar é pior, pois se acaba caindo no sistema tradicional, ou seja, na prova pericial. E daí a ação não anda, seja porque o autor não antecipa salários provisórios do perito, seja porque a simples perícia demora anos. Vale aqui lembrar as palavras de Voltaire: “Le mieux est l’ennemi du bien”.
No entanto, registre-se que o Ministério Público Federal discorda dos critérios adotados para os acordos e, inclusive, propôs três ações, uma civil pública, pedindo R$ 155 bilhões, e duas contra a Fundação Renova, cuja extinção pretende. Arguições de suspeição também foram feitas contra o magistrado, sob a alegação de que teria orientado alguns autores de ações individuais. No entanto, não se tem notícia de que tenham sido acolhidas.
Mas o desastre de Mariana tem outra particularidade inusitada. Descrentes de soluções domésticas, no ano de 2018 “25 municípios, igrejas, 530 empresas e mais de 200 mil atingidos” ingressaram na Corte Real de Justiça da Inglaterra, postulando indenização da BHP Billiton. Foi negado seguimento ao processo, sobreveio recurso. Nesta semana, a seção civil do tribunal de apelação reformou a decisão indeferitória, admitindo o andamento da ação.
Quais os reflexos e as consequências dessa inusitada medida, que permitirá a um tribunal inglês julgar um caso ocorrido no Brasil?
A primeira consideração — e para mim a mais grave — é a descrença na Justiça brasileira. Sim, tal como outros precedentes, como da Justiça inglesa aceitar um caso oriundo do Zâmbia e da Justiça de Haia, Holanda, julgar procedente uma ação por fatos ocorridos na Nigéria, o fato deixa claro o estado de ineficiência do nosso sistema de Justiça. A Constituição de 1988 não foi feliz ao criar um sistema com quatro instâncias e a jurisprudência, menos ainda, ao alargar as possibilidades legais de recursos, originando ações que levam 20 anos para terem a sentença cumprida.
Ora, se o número de ações chega a 200 mil, impossível pretender que cada uma tenha instrução feita pelos meios tradicionais, imputando ao autor, entre outras coisas, a prova de rendimentos, mesmo que seu trabalho fosse informal. A melhor via em tais casos é a composição amigável, cujo valor será objeto de negociação por quem o representa judicialmente.
Se as ações prosseguirem na Justiça inglesa, milhares de situações terão de ser avaliadas, como a existência de litispendência ou coisa julgada. No caso de conflito positivo de jurisdição, não haverá uma autoridade judiciária superior para definir o impasse, o que exigirá uma solução por parte do Judiciário de cada país.
A ação na Inglaterra apresentará uma só vantagem aos que por ela optarem. A tramitação, caso não haja acordo, é mais rápida. O processo terminará na apelação, pois a Suprema Corte daquele país restringe o direito de recurso a casos especialíssimos, julgando apenas cerca de 70 processos por ano.
Outra conclusão inevitável é a de que os tribunais brasileiros terão de adaptar-se aos novos tempos, pois a previsão de desastres ambientais por conta da mudança climática é certa. Danos ambientais com milhares de pessoas envolvidas serão mais frequentes do que no passado e isso exigirá novas formas de estrutura das varas judiciais, dando-se ao juiz o necessário apoio.
Por sua vez, a jurisprudência se afastará das tradicionais soluções do Código de Processo Civil e exigirá criatividade e ousadia aos que nela se envolverem, em especial os magistrados, seja qual for a instância.
Eis algumas das perplexidades criadas pelo desastre ambiental de Mariana, que, por sua complexidade e grandeza, ditará procedimentos de novos tempos.”